Mega-sena em Haskell: Um exemplo simples e legal de mônadas e monad transformers
O meu fraco entendimento de mônadas em Haskell começou há alguns anos atrás, quando eu ouvi que IO era uma mônada (seja lá o que fosse isso)… Apesar de ouvir a tão temida palavra “M”, eu não me assutei muito e continuei programando meus pequenos programinhas Haskell, usando “putStrLn”, “getLine”, “readFile”, “writeFile” e etc. E então, no meu terceiro ano de graudação, eu decidi implementar uma aplicação gráfica para a manipulação de autômatos finitos, usando GTK (Gtk2Hs). Durante o desenvolvimento desse programa, uma grande parte das minhas funções teve seu tipo “infectado” pelo “IO”, então eu pensei que fosse uma boa hora pra começar a aprender mais sobre essa tal de “Mônada”.
Daí eu descobri que existem muitas mônadas em Haskell, e que muitas delas são bem úteis e populares - mesmo quando você nem sabe que elas são mônadas… Existe a mônada State, mônadas para parsing, as mônadas Reader e Writer, mônadas Error, a mônada Either, a mônada Maybe e até a mônada List!!! SIM! (Maybe a)
e [a]
são mônadas! :D Bem, “tudo isso são mônadas e é tudo muito legal, mas quem se importa?”, você pode estar se perguntando. Eu espero dar o começo de uma resposta com o exemplo desse post.
Nesse post eu vou assumir que você tem pelo menos alguma experiência com Haskell, e que já brincou pelo menos com IO (quem sabe com Maybe também, hein?)…
Pois então, existe uma grande tradição anual no Brasil, que é um sorteio da Mega Sena todo dia 31 de Dezembro - a famosa “Mega da Virada”. Esse ano (2011) a minha família fez um bolão de 180 combinações, e eu escrevi um programa para conferir quais dessas combinações tinham os números sorteados. Eu escrevi o programa em Haskell, claro. E fui - mais uma vez - obrigado a aprofundar meus conhecimentos de mônadas e monad transformers para realizar o trabalho.
O programa deve funcionar assim: O arquivo contendo todas as 180 combinações (cada uma com 6 dezenas) deve ser lido. Então, 6 rodadas de entrada de dados devem acontecer: em cada rodada, o usuário entra com uma dezena e o programa adiciona essa dezena na parte “sortuda” de cada combinação que a contiver. Então, as 5 combinações com a maior parte “sortuda” são exibidas na tela. Só para lembrar: seis dessas “rodadas” precisam acontecer.
Eu comecei modelando o programa no estilo “bottom-up”, e a primeira coisa que defini foi um tipo de dados para representar uma combinação da Mega-Sena, o tipo “Combination”:
Note que uma Combination
tem dois conjuntos de ints, o lucky
e o unlucky
. O lucky
contém os números pertencentes à combinação e que já foram sorteados, enquanto os unlucky
são o resto… A instância de Ord
para Combination
também é interessante: uma combinação é maior que outra se o tamanho do seu conjunto “sortudo” é maior. Eu usei (flip compare)
na definição só para deixar mais claro que estamos fazendo uma comparação invertida: ao invés de determinar se é menor ou igual, determinamos se é maior.
O meu próximo passo foi implementar a leitura do arquivo para uma lista de Combination
. Essa parte do post pode parecer até simples demais e “fora de contexto”, mas eu tentei usar recursos legais de mônadas até aqui:
Por exemplo, comparando os tipos de makeCombination
e makeCombinations
, você vê que ambos têm muito em comum. Acho que a maioria das pessoas implementaria makeCombinations como makeCombinations = map makeCombination
. Eu só usei liftM para deixar bem claro que List
também é uma mônada. Portanto, nós estamos “elevando” a função makeCombination
ao patamar da mônada List. Agora, na definição de readCombinations
, nós precisamos usar liftM
mais uma vez, só que para elevar makeCombinations
ao patamar da mônada IO. A expressão liftM makeCombinations
tem o tipo IO [[Int]] → IO [Combination]
, e a expressão readMatrix
tem tipo FilePath → IO [[Int]]
, assim os tipos casam direitinho e podemos usar uma composição elegante, assim :)
(FilePath → IO [[Int]]) ∘ (IO [[Int]] → IO [Combination]) ⇒ (FilePath → IO [Combination])
Continuando no código, chegamos então à função principal do nosso verificador de loteria: a função matchWithCombination
, a qual toma como parâmetros um probe
(dezena recém-sorteada) e uma combinação de seis dezenas, retornando uma nova combinação com conjuntos “sortudo” e “azarado” atualizados com o casamento do probe
.
Nós usamos a função IntSet.intersection
para “casar” a dezena probe
com os números azarados (unlucky
), e então atualizamos o conjunto sortudo (lucky
), unindo-o com a (possível) nova dezena. A definição de matchWithCombination
também exemplifica um recurso muito legal na sintaxe do Haskell: é possível usar e definir funções de forma infixada, bastando colocar aspas reversas em volta do nome.
Bem… continuando, vamos à definição de matchWithCombinations
, que é bem óbvia: ela é quase somente um map (uma “promoção” à mônada List), mas nós precisamos conservar o argumento probe
(não promovê-lo), então é por isso que fazemos essa aplicação parcial:
Nosso programa agora já tem bastantes funcionalidades. Usando a função matchWithCombinations
, nós já podemos pegar uma dezena e saber quais são as combinações em que ele aparece. Dois dos requisitos que tínhamos definido estão faltando, porém:
Nós precisamos de entrada (o usuário precisa digitar os números no terminal) e de saída (as top 5 combinações devem ser exibidas na tela)
Precisamos realizar 6 rodadas de (entrada → processamento → saída)
A função matchWithCombination
realiza somente UM “passo” de atualização, portanto nós precisamos ficar fazendo chamadas aninhadas dela e ficar “passando o estado” dos resultados numa cadeia, mais ou menos assim:
(matchWithCombinations <dezena> (matchWithCombinations <dezena> (matchWithCombinations <dezena> originalCombs)))
Geralmente, para obter esse efeito de “passagem de um estado” entre chamadas de funções, nós usamos a mônada State. E, como você já deve ter adivinhado, para realizar operações de entrada e saída, nós usamos a toda poderosa mônada IO. É interessante perceber como cada “camada de funcionalidade” no seu programa corresponde a uma camada na Pilha de mônadas que o seu programa se torna. No nosso caso, nós precisamos combinar as mônadas “State” e “IO”, lembre disso…
Agora, em um pequeno desvio da nossa loucura combinatória, deixe-me mostrar pra vocês a simples e humilde mônada askForNewNumber
(uma função dentro da mônada IO). O objetivo de askForNewNumber
é ler uma linha do terminal e fazer o melhor que puder para transformar o que foi lido em um Int:
Nós queremos poder utilizar askForNewNumber
no corpo de uma mônada mais sofisticada, chamada includeNewNumber
. A mônada includeNewNumber
manterá um estado que consistirá da nossa lista de combinações, e vai (a cada vez que for chamada) ler um número do terminal e atualizar o estado com as combinações casadas com a dezena recém-lida. O tipo de includeNewNumber
tem que ser uma combinação de IO (pois ela usa askForNewNumber
) e de State. Mas como fazemos para combinar duas mônadas??
Bem, a boa notícia é que geralmente nós podemos combinar duas mônadas em uma nova mônada, usando uma coisinha chamada monad transformers :P No nosso caso, queremos “transformar” a uma simples mônada IO em uma mônada combinada “State IO”. Veja a linda definição de “includeNewNumber” com os seus próprios olhos:
Ao pé da letra, o tipo de includeNewNumber
é StateT [Combination] IO ()
, o que significa que aplicamos o “State Transformer” à mônada IO, que o tipo do nosso estado é [Combination]
e que o tipo retornado pela mônada IO é () (unit). O transformer StateT envolve
a mônada IO com uma camada de State, então agora a “pilha de funcionalidades” do nosso programa tem oficialmente 2 camadas! Legal, não?! :D Antes de continuar, uma pequena explicação: a mônada IO precisa sempre estar na base da pilha, principalmente pois todas as outras camadas devem ser “removidas” quando o programa for rodar, e o IO ()
que sobra é justamente o tipo da função main
. A tarefa de “remover” a camada de IO e executar entrada/saída é feita pelo sistema runtime do Haskell, e está fora do nosso controle :)
No corpo da definição de includeNewNumber
, nós precisamos elevar askForNewNumber
(usando a função lift
) para que ela bata com o tipo da camada exterior (StateT). Após obter o valor em probe
, nós modificamos o estado guardado pela mônada usando a função matchWithCombinations probe
. Agora, com a definição de includeNewNumber
completa, nós já estamos BEM próximos de ter esse programa PRONTO®. De fato, estamos tão próximos que já poderíamos chamar includeNewNumber
seis vezes… as dezenas seriam lidas do terminal e a lista de combinações seria corretamente atualizada; o único problema é que nada apareceria na tela :(
Claro que vamos implementar essa última funcionalidade restante (exibir as 5 melhores combinações), mas essa opcionalidade mostra que mônadas (e monad transformers) permitem a escrita de software de uma maneira bastante modular, onde funcionalidades independentes estão implementadas por código independente. Usar mônadas permite um alto grau de Separação de Responsabilidades. Vamos então em frente, com a implementação da nossa função mais cheia de funcionalidades possível: includeAndPrintTop5
:
Primeiro, nós incluímos uma dezena e extraímos o estado (já atualizado) para combs
. Então, passamos combs
por um pipeline que vai imprimir as 5 maiores combinações na tela. No final desse pipeline, nós precisamos “elevar” (lift
) novamente o resultado, para que o valor tipo IO ()
retornado por putStrLn seja promovido a um StateT [Combination] IO ()
que desejamos.
Caro leitor, está na hora! Vem chegando o fim desse post: vou mostrar pra vocês a implementação da função main
do nosso programa de loteria… Ela contém 2 linhas de código! :)
Explicações mais fáceis primeiro: na primeira linha nós lemos o arquivo para a variável com o nome sugestivo initial
. Então nós precisamos realizar 6 rodadas de includeAndPrintTop5
, e isso é o que replicateM_ 6
está fazendo ali. Se você quiser, pode fazer essa repetição manualmente, assim:
execStateT (includeAndPrintTop5 » includeAndPrintTop5 » includeAndPrintTop5 »
includeAndPrintTop5 » includeAndPrintTop5 » includeAndPrintTop5 » return ()) initial
Por fim, nós usamos a função execStateT
para “desempilhar” o State Transformer e deixar o resto do trabalho para nosso velho amigo IO (). Os argumentos para execStateT são a mônada State que ele deve “executar” e um estado inicial. Ele então executa essa mônada e ignora o valor retornado (caso você queira o valor retornado, pode usar evalStateT
).
PRONTO! TA-DA! :D Por favor não acredite nessa magia negra que eu disse que fiz. Pegue o código no meu repositório de “katas” no GitHub (https://github.com/joaopizani/katas) e rode você mesmo, modifique-o e brinque com ele… Divirta-se! :)
PS:
Se você já mexeu com listas em Haskell antes, você conhece a função
replicate
de Data.List… E, de fato,replicateM_
ereplicate
funcionam de maneira MUITO similar. Olha só (≡ significa “é equivalente a”):replicate 6 1 ≡ 1 : 1 : 1 : 1 : 1 : 1 : [] replicateM_ 6 m ≡ m » m » m » m » m » m » (return ())
Se você quer REALMENTE saber como
1 : 1 : 1 : []
em » m » m » (return ())
estão relacionados, leia o código-fonte. Sério, ele está AQUI.